Ciência e cidadania» é o título que substitui o «ciência e sociedade» do colóquio que, em 2004, esteve na origem da maior parte dos textos agora publicados. Os dois títulos adaptam-se bem a uma homenagem a Bento de Jesus Caraça, cidadão-cientista para quem a ciência seria inseparável da sociedade que a produz e aproveita. O sublinhar do lado cidadão do cientista e da ciência associa-lhe um empenhamento social e ético, perante o valor hoje menos definido (plural e impreciso) do termo «sociedade».
Os dois títulos são igualmente adequados aos textos reunidos, discutindo três tipos de questões: comunicação, ética e decisão (acção) em ciência. Afirma-se a necessidade da informação e dos valores na tomada de decisões por parte dos cientistas, por parte dos poderes públicos e por parte dos cidadãos que devem poder acompanhar a investigação e as suas consequências. Todos parecem estar de acordo sobre a necessidade de não isolar o saber e os investigadores em virtuais torres de marfim. Mas essas torres são hoje impossíveis, não em virtude da democratização da cultura científica ambicionada por Caraça, mas pela força de agendas económicas e políticas, com o controlo do financiamento ou da informação e, sobretudo, a subordinação da ciência à visibilidade social e utilidade imediata da tecnologia. Pelo que a discussão se desloca em direcções aparentemente contraditórias. Sublinha-se o valor da
liberdade e a autonomia da investigação (Nuno Crato, por exemplo) e, ao mesmo tempo, a necessidade do controlo social das decisões sobre ciência (como no texto de Eduarda Gonçalves). Mas a contradição não está onde parece. A liberdade da investigação e a sua imediata «inutilidade» podem ser vistas como socialmente necessárias e, em todo o caso, a liberdade não obriga ao segredo. Pelo contrário, exemplos de ocultação de informação mostram os problemas da subordinação da ciência às lógicas do mercado, o que abre questões de segurança e não apenas de controlo de políticas.
Que os problemas não são simples, percebe-se bem no que é (para mim) o melhor texto do conjunto, o artigo de Hermínio Martins sobre «Biologia e política: eugenismos de ontem e de hoje» (associando-se bem com o texto de Arriscado Nunes sobre Biomedicina e saúde pública). É patente a tomada de posição de Hermínio Martins na tensão entre eugenismo e universalidade de direitos, nomeadamente através de uma ironia que não prejudica o seu rigor. Ao mesmo tempo, mostra a complexidade e extensão de sujeitos e temas envolvidos, da esquerda à direita, em regimes fascistas, socialistas ou democráticos ao longo de todo o século XX e ainda hoje, e envolvendo não apenas racismo ou exclusão. Basta referir que, se já não há que discutir práticas de «higiene racial», é delicado o problema da extensão dos direitos e da putativa natureza eugénica de parte da investigação nas ciências da vida, incluindo questões como o controlo da natalidade ou a procriação medicamente assistida. Um texto polémico, portanto, pelas
associações que faz, e não tanto pelas referências críticas a personagens de fácil repúdio (como James Watson).
A responsabilidade dos cientistas e das comunidades contraria o álibi do poder dos governantes, aqui como no texto de Viriato Soromenho Marques. Ou seja, evidencia-se a natureza política e moral das escolhas dos cientistas e das comunidades. Além deste conjunto de participações, em que se inclui um interessante ensaio de Fernando Gil
sobre acaso, necessidade e acção, o livro tem uma primeira parte sobre o próprio homenageado, com alguns textos já conhecidos, não contribuindo pois para aprofundar o conhecimento sobre o seu pensamento e a sua acção. Em particular parece fazer falta uma perspectiva que distinga as várias fases do pensamento de Caraça e a sua progressiva aproximação ao marxismo, como o fez Luís Andrade num estudo dos anos 90, mostrando como pode ser enganador considerar no mesmo plano os escritos sobre a cultura integral do indivíduo, de 1933, e os Conceitos
fundamentais da Matemática, de 1941-1942.
Também por isso creio ser relevante pensar a relação entre ciência e sociedade tendo presente os «Conceitos fundamentais», no cerne da polémica com António Sérgio nas páginas da Vértice em 1946, defendendo a natureza social (e de classe) de conceitos como variável e função, por isso inacessíveis a Platão. Afirmar a natureza social e histórica da ciência não é o mesmo que equiparar ciência e senso comum, ou tornar equivalentes todos os discursos. Mas leva a distinguir entre o seu carácter global, no sentido de racionalmente fundado, acessível e traduzível em contextos diversos, e o seu carácter universal, que implicaria o seu valor intrínseco e trans-histórico. Na minha opinião, a consideração assumida do mutável e do contingente não obriga à indiferença perante discursos contraditórios. Pelo contrário, permite não aceitar acriticamente discursos que, sendo certamente científicos (da economia à biologia), são marcados socialmente e, também por isso, são transitórios.