No âmbito da investigação dos Episódios de Conflito Ambiental, este projecto centra a sua atenção no conflito ambiental provocado pela mudança de estratégia, por parte do XIII Governo Constitucional presidido pelo Eng. António Guterres, na gestão dos resíduos industriais perigosos. Na orientação do governo houve uma intenção deliberada de realizar um conjunto de medidas de carácter curativo para fazer face ao grave problema do passivo ambiental e dos riscos possíveis para a saúde pública provocados pelo despejo anárquico de resíduos, aspecto que tem caracterizado a paisagem industrial do nosso país nas últimas décadas. Na mesma óptica, não foram apresentadas medidas de carácter preventivo, de modo a evitar que a situação de degradação ambiental acabe por ter de ser equacionada mais tarde.
A iniciativa política do XIII Governo, em matéria de resíduos industriais perigosos, revelou-se sem precedentes, dada a determinação e empenhamento em apontar uma estratégia assente na co-incineração como a política eficaz para a resolução, de uma forma integrada, do problema dos resíduos possíveis de serem queimados. Esta iniciativa pretendia substituir a anterior estratégia assente na construção de uma incineradora de raiz e na construção de dois aterros sanitários. Em vez disso, a nova proposta assentava num conjunto de medidas políticas para a gestão dos referidos resíduos, em que a opção recaía sobre a utilização das cimenteiras para procederem à queima, por eliminação/valorização energética dos resíduos industriais perigosos nos seus fornos de cimento, como forma referencial de tratamento. Trata-se de uma escolha que provou obter um largo consenso perante o actual desenvolvimento tecnológico e as opções políticas ensaiadas noutros países, circunstâncias que lhe permitem apresentar-se com maiores vantagens técnicas, económicas e ambientais do que a incineração dedicada.
Todavia, esse considerando não impediu que o referido processo se tenha mostrado extremamente controverso em termos ambientais. Nomeadamente, por via das lacunas detectadas no Estudo de Impacto Ambiental, elaborado pelo proponente à luz do que determina a lei nesta matéria e da consulta do público se ter revelado pouco esclarecedora, dadas as diversas incapacidades, tais como, o tipo de discursos técnicos utilizados nas audiências públicas. Ao que se acrescenta a ausência de um Plano de Gestão Estratégica para todos os resíduos e os respectivos planos sectoriais; assim como a falta de apresentação de outras alternativas tecnológicas no quadro de uma política assente nos chamados 3 R’s, ou seja, a aplicação de uma política de gestão estratégica dos resíduos assente preferencialmente na redução da sua produção, seguida depois pela reutilização e reciclagem, como formas de tratamento de resíduos. A estes três momentos, geralmente seguem-se outros que pretendem reduzir a perigosidade do resíduo ou então, como medida de “fim de linha”, pretendem eliminar (com ou sem valorização) o resíduo. Aqui se encontram: a incineração, o tratamento físico-químico, a deposição em aterro controlado e a exportação.
A citada estratégia revelou períodos de grande conflitualidade pública, ao promover por si o surgimento de um conjunto de questões, às quais foram acrescentadas algumas dúvidas, sobretudo no que toca ao papel do Estado como promotor de políticas, na medida em que, na prática, colocou nas mãos da iniciativa privada, em regime de exclusividade, todo o processo de gestão dos resíduos industriais produzidos no país. Como contrapartida para si próprio, o Estado guarda uma única função em todo o processo, a de zelar pelo cumprimento da legislação aplicável em matéria de resíduos, sem que de forma concreta tenha apresentado intenções de chamar a si a monitorização das acções da empresa seleccionada. Ora, essa cumplicidade entre os dois principais intervenientes terá contribuído para que fosse instalada a dúvida sobre a transparência do negócio com as cimenteiras e tenha ficado pouco claro qual viria a ser o papel do Estado num modelo de gestão dos resíduos previamente proposto pelo proponente da obra.
Estas condições foram favoráveis à mobilização de vários sectores da sociedade portuguesa e à introdução de uma linha de conflito aberto entre aqueles e o Estado, este último representado na figura do Ministério do Ambiente. Da colisão das posições defendidas por cada um deles resultaram acções massivas de protesto contra a iniciativa, contando com o apoio de vários agrupamentos e entidades locais, regionais e nacionais. A luta gerada em redor das localizações, onde se destacam lógicas diferentes na defesa do ambiente, por vezes distantes das concepções que encaram a natureza como património comum da humanidade que deve ser preservado colectivamente – já que em causa poderia estar a defesa do património local – muito se ficou a dever ao facto de alguns locais previstos terem sido “sacrificados” ao longo de muitos anos.
O conjunto das questões apresentadas tornou-se no eixo da discussão mantida e conduziu ao aparecimento, em cada uma das fases do conflito, de novos actores empenhados teoricamente em dar o seu contributo no sentido do esclarecimento dos eventuais riscos do processo, de modo a deixar as populações das localizações escolhidas menos apreensivas. Entre alguns dos actores chamados gradualmente a intervir, para além do destaque necessariamente dado ao papel das Organizações Não Governamentais (ONG’s) locais e nacionais, e da análise do contributo dos autarcas envolvidos, é forçoso destacar, sem dúvida, o papel desempenhado por alguns elementos da comunidade científica nas principais fases do processo. Ela mesma, até aqui pouco habituada a ser chamada a debruçar-se publicamente sobre o papel da ciência na sociedade portuguesa e sobre as suas inquestionáveis certezas, e muito menos habituada a ser chamada como elemento regulador de conflitos entre a sociedade portuguesa e o Estado, o mesmo que lhe garante financiamento. Idêntico enquadramento serviu para manifestar a necessidade da própria comunidade científica ter de debater internamente todos os aspectos envolvidos na resolução do problema dos resíduos em Portugal, não só os directamente ligados à escolha de determinada opção tecnológica para a resolução do problema mas, igualmente, das questões estratégicas envolvidas, dando-se conta das realidades sociais das localidades afectadas e dos aspectos éticos e estéticos que emergem da crença num futuro melhor, aos quais se ligam as condições que permitem dar respostas às preocupações manifestadas no exercício objectivo da “cidadania”.
Em todos esses momentos, não nos surge alheio o destaque que os media deram à questão. A sua insistência permitiu, segundo a nossa hipótese, não só o prolongamento do processo até à decisão final do Parlamento em suspendê-lo, como também, informar a sociedade portuguesa sobre os riscos envolvidos no uso de tal dispositivo tecnológico na eliminação de resíduos industriais perigosos. A este último aspecto não terá sido casual a interacção mantida com certos elementos da comunidade científica interessados em discutir, não só os benefícios que adviriam da eliminação dessa chaga ambiental provocada pelo acumular em toda a parte de resíduos perigosos provenientes da indústria, mas, igualmente, preocupada com os efeitos nefastos, locais e nacionais, que tal opção poderia comportar. Essa interacção permitiu também conjugar, à escala local e regional, esforços no sentido de serem
mobilizadas as populações em defesa da sua autonomia e identidade locais, como pontos de apoio de uma qualidade de vida local desejável para as gerações actuais e as vindouras.
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