No dealbar do século XXI, o automóvel começa a revelar-se surpreendentemente também uma incomodidade, e, quase tão grave como isso, uma incomodidade tanto com custos económicos como ambientais. O trânsito, a sinistralidade, a poluição (sonora, atmosférica, visual ou global) e o próprio espaço que a sua presença e utilização exigem no serviço ao cidadão individual estão a torná-lo insustentável e alvo de uma necessária, quiçá inevitável, obsolescência enquanto modo de transporte preferencial em meio urbano. Estaremos, assim, perante uma mudança de paradigma?
Das instâncias internacionais em que se debate o problema da alteração do clima até à gestão autárquica do espaço da cidade, o automóvel aparece já hoje como pretexto para uma movimentação, embora talvez ainda dispersa e não generalizada, no sentido de encontrar novas estratégias, técnicas ou formas de mobilidade, que se articulam ao modelo estabelecido de predomínio do transporte individual, o qual, inevitavelmente, terá de ser reconvertido – tanto tecnologicamente como nos seus regimes de uso. As novas concepções de políticas dos transportes para os espaços urbanos começam a apontar para mudanças de fundo nos padrões de mobilidade. Mas como é que os
cidadãos, utilizadores diários do automóvel, percepcionam esta mudança? Qual a sua consciência dos problemas gerados pelo uso quotidiano e indiscriminado do automóvel e quais as suas atitudes perante as mudanças que se anunciam?
Estas interrogações são o ponto de partida deste estudo e o momento parece ser particularmente oportuno. Em Lisboa e no Porto começam a surgir medidas, talvez ainda desconexas e pouco integradas, mas ainda assim que mostram se não vontade política, ao menos a consciência da inevitabilidade de encarar o automóvel como uma fonte de problemas e de promover o uso do transporte público – assumindo que nesta categoria se inclui desde o transporte colectivo de massas até ao transporte individual de utilização eventual (como os táxis ou os automóveis de aluguer). De resto, a criação das chamadas Autoridades Metropolitanas de Transportes para aquelas duas áreas metropolitanas não deixa de revelar, no mínimo, a consciência de que, em termos de política local de transportes, ao menos há que mudar de escala na definição e tratamento dos problemas. Igualmente, por força dos compromissos que decorrem do Protocolo de Quioto, adivinham-se novas medidas penalizadoras do uso do automóvel e de incitamento a um maior recurso a formas alternativas de transporte individual e colectivo.
Mas as viragens de orientação que despontam na política de transportes implicam aceitação social e uma efectiva mudança de comportamento na relação como o automóvel, mormente por parte dos que, adultos e jovens, todos os dias se deslocam, volante nas mãos, para chegar a um local de trabalho, estudo ou lazer. Ora, mesmo no pressuposto de que na vertente política e organizacional esta viragem seja feita de forma consistente, exemplar e coerente, estas mudanças raramente são pacíficas ou isentas de confronto de interesses, desejos, alternativas e percepções diversas. Afinal, o automóvel desempenha uma função social específica e está profundamente enraizado no nosso quotidiano e, se os seus usos viraram ‘desusos’, no dizer do título deste Projecto, no fim de contas, as atitudes e comportamentos dos cidadãos são o elemento fulcral de qualquer mudança que vá ao encontro da ideia de desenvolvimento sustentável.
Inquéritos como os que se levara a cabo no Observa com centramento temático na problemática do ambiente, evidenciam que os portugueses, apesar de terem no automóvel o seu meio de transporte predilecto, reconhecem
largamente o forte impacte do seu uso, não só no ambiente global mas muito particularmente no ambiente urbano, onde ele aparece como grande responsável pela degradação da qualidade de vida e do quotidiano nas grandes cidades e áreas metropolitanas. Estas evidências são já um primeiro sinal das contradições sociais e simbólicas de uma relação aparentemente paradoxal, ainda que não possa afirmar-se que, de forma generalizada, a experiência dessa relação seja assim percepcionada.
Destacar as causas ou motivações individuais e colectivas, subjectivas e objectivas, para o uso ou os usos que damos ao automóvel num país onde a sobrecarga do transporte individual vigora constituiu, pois, um objectivo estratégico da investigação de que este relatório dá conta. Não sendo finalidade específica deste estudo apontar soluções sobre
formas alternativas de mobilidade colectiva, a exemplaridade de medidas que assinalem, por exemplo, as potencialidades contributivas do sector do transporte individual para a diminuição das emissões de gases de efeito de estufa, não estão fora das nossas expectativas.
De facto, em causa não estão apenas os novos desafios de origem ambiental, uns associados às alterações climáticas, outros aos problemas mais directos do ambiente urbano de que derivam, mas também medidas anunciadas de alteração do quadro fiscal sobre veículos automóveis e mesmo eventuais iniciativas de restrição pontual ou localizada ao tráfego automóvel. Em causa deve estar também um esforço de compreensão que contribua para uma visão mais integrada e estratégica dos problemas aqui identificados que agregue diversas dimensões das políticas públicas, para que, como não raras vezes acontece entre nós, o que se restringe ou recupera de um lado não esteja a ser promovido ou desbaratado do outro, por motivos que nem a lógica da divisão do trabalho político-administrativo deixa entender. Em qualquer caso, este projecto não pretende ser abrangente a esse ponto. Trata-se de identificar os factores que condicionam a disponibilidade social e cultural para a mudança neste sector específico da vida quotidiana moderna que simbolicamente nomeámos como dos “usos e desusos do transporte individual”.
Publicações associadas ao projecto: “O Automóvel – Usos e Desusos (Diapositivos)” e “O Automóvel – Usos e Desusos do Transporte Individual (Estudos)“