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Antropologia e conservação da natureza: o caso de uma possível reintrodução de espécies outrora emblemáticas no parque natural da serra da estrela (Portugal)

2010

No quadro geral da conservação da natureza, tem-se vindo a assistir a uma mudança de enfoque, predominando, actual e teoricamente, uma perspectiva assente no pressuposto da inclusão das comunidades locais para o sucesso da mesma. Nesta perspectiva, uma qualquer estratégia de conservação deve ter em consideração não só a dimensão ecológica, mas também a dimensão económica e sócio-cultural do contexto em que vai ser aplicada, sendo sobre esta
última que a antropologia se pode debruçar e reclamar um lugar para si.

Tal consideração sustentou a realização de um estudo centrado numa possível reintrodução de três espécies outrora emblemáticas no Parque Natural da Serra da Estrela (PNSE): a águia-real (Aquila chrysaetos), o grifo (Gyps fulvus) e o lobo-ibérico (Canis lupus signatus). Pretendeu-se aceder, por um lado, ao grau de aceitação e apoio dessa possível reintrodução por parte da população local e, por outro, aos possíveis impactos da mesma no contexto social local.

Tal passou, por seu turno, por um enquadramento geral das percepções sociais da fauna local. Para tal, procedeu-se à recolha de dados entre Setembro de 2009 e Março de 2010 através de técnicas complementares: análise de documentos, entrevistas informais (n=18) e entrevistas semiestruturadas a residentes (n=116) de sete freguesias rurais da zona noroeste do PNSE. Os dados foram analisados qualitativa e quantitativamente, através da estatística não-paramétrica. Dos resultados obtidos destacam-se três aspectos:

(i) O contexto social local tem sofrido ao longo dos tempos uma forte mudança social, conducente ao decréscimo e envelhecimento populacional, à diminuição do peso económico do sector primário e ao abandono das práticas
agro-pecuárias tradicionais, extremamente importantes para as espécies em causa devido aos impactos a nível da disponibilidade alimentar. Tal poderá ter estado na base da sua extinção, para além de poder comprometer a própria reintrodução, até porque, segundo a grande maioria dos inquiridos (n=103, 89%), o futuro da agro-pastorícia local avizinha-se negativo.

(ii) Os dados sugerem que as percepções sociais da fauna local estão alicerçadas sobretudo em critérios utilitários, estéticos e ecológicos, originando uma «escala sociozoológica» (Arluke e Sanders, 1996) pautada essencialmente pelo dualismo bom/mau.

(iii) Nesta escala, as três espécies em causa recaem, numa óptica local, na categoria “maus animais”, podendo ser tidas como espécies nocivas devido a possíveis conflitos de interesse (na pecuária, caça e pastorícia) com as comunidades locais. Tal poderá estar, aliás, na base das opiniões eminentemente negativas dos inquiridos (n=86, 74%) face a uma possível reintrodução do lobo. Não obstante, as opiniões parecem ser positivas no caso da águia-real (n=71, 61%) e do grifo (n=50, 43%).

Este estudo pioneiro em contexto nacional pode ser tido como uma importante base para futuros estudos a desenvolver antes da própria reintrodução, tanto na área das ciências naturais, como na das ciências sociais. Para além disso, pode ser tido ainda como um pequeno contributo não só para a diversificação dentro da própria disciplina antropológica, mas também para evidenciar a importância de estudos atentos ao contexto social local da conservação da natureza, nomeadamente estudos antropológicos, ainda tão escassos no contexto nacional.